Acredite em você e ame quem você é.

Acredite em você e ame quem você é.

Agatha Christie
Depois de nossa aventura na casa de campo em Passy, retornamos com
grande açodamento a Londres. Várias cartas esperavam por Poirot. Leu uma
delas com um sorriso curioso e então a entregou para mim.
– Leia isto, mon ami.
Li primeiro a assinatura, “Abe Ryland”, e lembrei das palavras de Poirot: “o
homem mais rico do mundo”. A carta do sr. Ryland era curta e incisiva.
Expressava profunda insatisfação com a desculpa que Poirot dera para desistir na
última hora da proposta sul-americana.
– Isso nos faz matutar bastante, não acha? – disse Poirot.
– Acho que é natural ele estar um tanto incomodado.
– Não, não, você não entende. Lembre-se das palavras de Mayerling, o
homem que se refugiou aqui… só para acabar morrendo nas mãos dos inimigos
dele. “Número Dois é representado por um ‘S’ com dois traços verticais, o sinal
de um dólar, e também por duas listras e uma estrela. Portanto, pode-se deduzir
que ele é um indivíduo norte-americano e que representa o poder econômico.”
Acrescente a essas palavras o fato de que Ryland me ofereceu uma imensa
quantia para me fazer cair em tentação e sair de Londres… o que você acha,
Hastings?
– Se eu entendi – disse eu, mirando Poirot –, você suspeita que Abe Ryland,
o multimilionário, seja o Número Dois dos Quatro Grandes?
– Seu intelecto brilhante captou a ideia, Hastings. Sim, suspeito. O tom em
que você falou multimilionário foi eloquente, mas deixe-me enfatizar um fato:
essa coisa é comandada por homens do alto escalão, e o sr. Ryland tem fama de
não ser flor que se cheire quando o assunto é negócio. É um líder habilidoso e
inescrupuloso; um empresário com toda a riqueza ao seu dispor e em busca de
poder ilimitado.
Sem dúvida, o ponto de vista de Poirot tinha certa lógica. Perguntei-lhe
quando ele se convencera sobre o assunto.
– Mas é justamente isso. Não tenho certeza de nada. Não há como ter
certeza. Mon ami, faria qualquer coisa para saber. Mas neste meio-tempo deixe-
me colocar Abe Ryland como nosso definitivo Número Dois. Assim, nos
aproximamos de nosso objetivo.
– Ele chegou há pouco em Londres, vejo por isso – disse eu, dando um
peteleco na carta. – Por que não o chama e lhe apresenta as desculpas em
pessoa?
– Talvez faça isso.
Dois dias depois, Poirot voltou a nossos aposentos em estado de agitação
infinita. Não era comum vê-lo daquele jeito tão impulsivo. Agarrou-me pelas
duas mãos.
– Meu amigo, surgiu uma tremenda oportunidade! Algo sem precedentes,
que nunca vai se repetir! Mas há perigo, perigo real. Não deveria nem pedir a
você.
Se Poirot tentava me assustar, seguia o caminho errado. Deixei isso bem
claro. Tornando-se menos incoerente, ele revelou seu plano.
Parecia que Ryland procurava um secretário britânico, com boa presença e
bem articulado. Poirot sugeria que eu me candidatasse ao cargo.
– Eu mesmo o faria, mon ami – explicou, desculpando-se. – Mas, sabe, para
mim é quase impossível me disfarçar de modo eficiente. Falo inglês muito bem
(exceto quando estou empolgado), mas é difícil esconder o sotaque. Além do
mais, ainda que sacrificasse meu bigode, duvido que mesmo sem ele eu não seria
reconhecido como Hercule Poirot.
Duvidei também e me declarei pronto e desejoso de assumir o papel e
penetrar nos domínios de Ryland.
– Aposto que ele não vai me contratar mesmo – observei.
– Ah, vai sim. Com a carta de recomendação que vou providenciar, ele vai
ficar lambendo os beiços: assinada pelo ministro do Interior em pessoa.
Pareceu-me um certo exagero, mas Poirot não aceitou minhas objeções.
– Ah, vai sim. A pedido dele, uma vez investiguei um probleminha que
poderia ter causado um grave escândalo. Tudo foi solucionado com classe e
discrição. Agora, como se diz, ele está comendo na minha mão.
Nosso primeiro passo foi contratar os serviços de um artista do “disfarce”.
Era um homenzinho de esquisita conformação craniana, lembrando a de um
pássaro, não muito diferente da de Poirot. Sem falar nada, avaliou-me da cabeça
aos pés e então colocou mãos à obra. Quando me olhei no espelho meia hora
depois, fiquei espantado. Sapatos especiais me deixaram cinco centímetros mais
alto. O casaco caiu bem; deu-me uma aparência longilínea, esguia e esbelta.
Sobrancelhas habilmente modificadas e almofadas internas nas bochechas deram
a meu rosto uma expressão totalmente distinta, sem falar no bronzeado de meu
rosto, que virou coisa do passado. Meu bigode desapareceu, e um dente de ouro
brilhava em meu sorriso.
– Seu nome – disse Poirot – é Arthur Neville. Que Deus o proteja, meu
caro… pois temo que você se aventure em lugares arriscados.
Com o coração palpitante apresentei-me no Savoy, na hora determinada
pelo sr. Ryland, e pedi para falar com o grande homem.
Depois de aguardar um tempo, fui acompanhado até uma suíte de um andar
superior.
Ryland estava sentado à mesa. Aberta em sua frente estava uma carta que,
pelo que consegui ver de soslaio, foi escrita com a caligrafia do ministro do
Interior. Era a primeira vez em que eu me encontrava com o milionário
americano, e não pude evitar: fiquei impressionado. Alto, magro, queixo
proeminente e nariz levemente adunco. Encobertos por espessas sobrancelhas, os
olhos faiscavam, frios e cinzentos. Tinha uma vasta cabeleira grisalha. Um
charuto comprido e escuro (sem o qual, fiquei sabendo mais tarde, ele nunca era
visto) projetava-se licenciosamente no canto da boca.
– Sente aí – resmungou.
Obedeci. Ele deu um piparote na carta em sua frente.
– A julgar por isto aqui, você tem todos os requisitos. Não preciso procurar
mais. Mas me diga, é bom em assuntos sociais?
Disse que eu pensava ser capaz de desempenhar-me bem a esse respeito.
– Quero dizer, se eu recebesse um monte de duques, condes e viscondes e
coisas do gênero em minha nova residência no interior, seria capaz de classificálos de modo correto e distribuí-los na mesa de jantar?
– Ah! Com facilidade – respondi, sorrindo.
Trocamos outras informações preliminares e então me vi contratado. O sr.
Ryland queria um secretário bem articulado com a sociedade britânica, pois já
tinha um secretário norte-americano e uma estenógrafa.
Dois dias mais tarde, rumei ao sul até Hatton Chase, a mansão do duque de
Loamshire, alugada por seis meses pelo milionário americano.
Meus compromissos não me impuseram dificuldades. Em certa ocasião de
minha vida, eu havia sido secretário particular de um dinâmico membro do
parlamento, de modo que não estava assumindo um cargo desconhecido. Com
frequência, o sr. Ryland reunia bastante gente aos fins de semana, mas o meio da
semana era relativamente tranquilo. Eu quase não enxergava o secretário
americano, sr. Appleby; parecia-me um jovem americano normal, agradável e
bem competente. Já a srta. Martin, a estenógrafa, eu via bem mais. Uma ruiva
linda, de 23, 24 anos, olhos castanhos por vezes travessos, em geral sérios e
mirando o chão. Tive a impressão de que ela não gostava nem confiava no
patrão, embora, é claro, ela fosse cuidadosa e nunca deixasse transparecer coisa
parecida. Mas, quando eu menos esperava, ela se abriu comigo.
É lógico, eu tinha escrutinado minuciosamente todos os membros da casa.
Um par de empregados havia sido contratado há pouco, um lacaio e uma
arrumadeira, se não me engano. O mordomo, a governanta e o cozinheiro
pertenciam ao staff do duque e haviam concordado em permanecer na casa.
Descartei as insignificantes arrumadeiras e investiguei James, o segundo lacaio,
com bastante cuidado, mas ficou evidente que ele era um sublacaio e apenas um
sublacaio. Na verdade, ele havia sido contratado pelo mordomo. Quem mais me
inspirou desconfianças foi Deaves, o pajem de Ryland, trazido de Nova York.
Apesar de ser inglês de nascimento e ter modos irrepreensíveis, despertou-me
obscuras suspeitas.
Eu estava em Hatton Chase há três semanas, e não acontecera um incidente
sequer para apoiar nossa teoria. Não havia vestígio algum das atividades dos
Quatro Grandes. O sr. Ryland era um homem de força e personalidade
dominantes, mas eu começava a crer que Poirot cometera um engano ao associálo àquela terrível organização. Numa noite, na hora do jantar, inclusive
mencionou Poirot.
– Homenzinho estupendo, dizem. Mas costuma roer a corda. Como sei
disso? Contratei-o para um serviço. Ele desistiu na última hora. Para mim chega
desse tal de Hercule Poirot.
Em momentos como esse, eu sentia o enchimento das bochechas
murchando!
Foi então que a srta. Martin me contou uma história bastante curiosa.
Ryland tinha ido passar o dia em Londres, levando Appleby junto com ele. Após
o chá, a srta. Martin e eu passeávamos lado a lado no jardim. Eu apreciava muito
o jeito dela, genuíno e natural. Notei que algo a preocupava. Enfim ela resolveu
se abrir.
– Sabe, major Neville – disse ela –, estou pensando seriamente em pedir
demissão.
Demonstrei certa surpresa. Ela apressou-se em continuar.
– Ah! Sei, é um trabalho maravilhoso. Imagino que a maioria das pessoas
me consideraria precipitada por desperdiçá-lo. Mas não suporto abusos, major
Neville. Ser destratada como um cavalariano raso… isso eu não consigo
aguentar. Um cavalheiro jamais faria uma coisa dessas.
– Ryland destratou você?
Ela assentiu com a cabeça.
– Claro, ele é sempre muito irritadiço e de pavio curto. Isso até é tolerável.
Ossos do ofício. Mas deixar se dominar por uma fúria absoluta… sem motivo
aparente. Ele parecia mesmo capaz de me matar! E, como eu disse, sem motivo
nenhum!
– Quer me explicar melhor? – disse com o interesse aguçado.
– Sabe, sou eu que abro toda a correspondência do sr. Ryland. Algumas
cartas entrego ao sr. Appleby, outras eu mesma administro, mas faço a seleção
preliminar. Bem, chegaram umas cartas, escritas em papel azul, com um número
quatro timbrado no canto do envelope… o senhor disse alguma coisa?
Não fui capaz de reprimir uma exclamação, mas apressei-me em balançar a
cabeça e implorar que ela continuasse.
– Bem, como eu dizia, essas cartas chegaram. Há ordens estritas para elas
nunca serem abertas, e sim serem entregues intactas ao sr. Ryland. E, é claro,
sempre fiz isso. Mas ontem de manhã havia muita correspondência, e eu estava
abrindo as cartas numa pressa tremenda. Por engano abri uma dessas cartas.
Quando percebi o que havia feito, levei a carta ao sr. Ryland e expliquei. Para
meu completo espanto, ele ficou possesso. Como eu disse, fiquei muito
assustada.
– Imagino… o que será que dizia a carta para aborrecê-lo tanto assim?
– Nada mesmo… essa é a parte mais curiosa da história. Eu tinha lido antes
de descobrir o erro. Era bem sucinta. Ainda lembro palavra por palavra, e não
havia nada capaz de incomodar alguém.
– É capaz de repetir, então? – encorajei-a.
– Sim.
Ela fez uma pausa e em seguida repetiu devagar, enquanto eu tomava nota
das palavras discretamente:
Caro Abe,
O essencial nesse momento é ver a propriedade. Se você quiser incluir a
pedreira, o preço é 17 mil. Comissão de 11% é um exagero; 4% é suficiente.
Seu,
Arthur Leversham
A srta. Martin prosseguiu:
– Tudo indica ser alguma propriedade que o sr. Ryland pensava comprar.
Mas, na verdade, acho que alguém capaz de perder o controle por uma coisa
insignificante como essa é mesmo perigoso. O que acha que eu devo fazer, major
Neville? O senhor tem mais experiência do mundo do que eu.
Procurei acalmar a moça, salientando que o sr. Ryland provavelmente
estivera sofrendo do inimigo de sua raça: a indigestão. Enfim, ao nos
despedirmos, ela estava bem aliviada. Mas eu mesmo não estava satisfeito.
Quando a moça se retirou e encontrei-me só, peguei meu caderno e transcrevi a
carta que eu anotara rapidamente. O que significava aquela mensagem
aparentemente inócua? Teria a ver com alguma transação que Ryland andava
fazendo, e ele estava receoso de que vazassem informações antes do negócio se
concretizar? Era uma explicação plausível. Então me lembrei do pequeno
número quatro no envelope e senti que, finalmente, estava no rastro daquilo que
procurávamos.
Passei toda aquela tarde e boa parte do dia seguinte tentando decifrar a carta
– e então matei a charada. Era bem simples até. O número quatro era a pista.
Lendo cada quarta palavra da carta, aparecia uma mensagem bem diferente.
“Essencial ver você pedreira dezessete, onze, quatro.”
A solução dos números era fácil. Dezessete significava dezessete de
outubro – amanhã. Onze era o horário. Quatro era a assinatura – quer fosse o
misterioso Número Quatro ou quer fosse, vamos dizer, a “marca registrada” dos
Quatro Grandes. A pedreira também era inteligível. Havia uma grande pedreira
abandonada num terreno a cerca de oitocentos metros da casa… um local ermo,
ideal para encontros secretos.
Por um instante, fiquei tentado a comandar eu mesmo o show. Para mim
seria motivo de orgulho, pelo menos uma vez, ter o prazer de superar Poirot.
Mas no fim controlei a tentação. Esse era um caso grandioso – eu não tinha
o direito de agir sozinho e colocar em risco nossas chances de sucesso. Pela
primeira vez, havíamos antecipado um passo de nossos inimigos. Precisávamos
agir certo dessa vez – e, por mais que eu tentasse esconder, Poirot tinha o melhor
cérebro dos dois.
Escrevi a Poirot às pressas, expondo os fatos e explicando o quão urgente
era ouvir secretamente o que seria tratado naquele encontro. Se ele quisesse
deixar comigo, ótimo, mas dei instruções detalhadas de como localizar a
pedreira a partir da estação, caso ele considerasse apropriado comparecer
pessoalmente.
Eu mesmo levei a carta até a vila e a remeti. Ao longo de minha estada, eu
conseguira me comunicar com Poirot, mas concordáramos que ele não deveria
tentar se comunicar comigo no caso de minha correspondência ser violada.
Na noite seguinte, eu mal conseguia esconder a ansiedade. Não havia
hóspedes na casa, e fiquei ocupado com o sr. Ryland no gabinete dele durante
todo o começo da noite. Eu previra que isso poderia acontecer, por isso não tinha
esperança de conseguir me encontrar com Poirot na estação. Porém, eu estava
certo de que seria dispensado bem antes das onze horas.
Pouco depois das dez e meia, o sr. Ryland olhou o relógio de relance e
declarou que estava “cansado”. Entendi a deixa e discretamente retirei-me. Subi
as escadas como se estivesse indo dormir, mas deslizei silencioso por uma
escada lateral e me vi no jardim, tomando a precaução de abotoar até em cima o
sobretudo escuro para esconder o peito da camisa branca.
Eu já havia andado um bom trecho pelo jardim quando dei uma espiada
para trás. O sr. Ryland acabava de sair pela janela do gabinete e de entrar no
jardim. Estava se dirigindo ao local do encontro marcado. Dobrei a velocidade
de meu passo, de forma a obter uma dianteira segura. Cheguei à pedreira um
pouco sem fôlego. Não parecia haver ninguém por perto. Rastejei até o meio de
um espesso emaranhado de arbustos e esperei pelos acontecimentos.
Dez minutos depois, às onze em ponto, Ryland aproximou-se em silêncio,
com o indefectível charuto na boca e o olhar encoberto pela aba do chapéu.
Relanceou os olhos ao redor e então mergulhou no desfiladeiro da pedreira
abaixo. Naquele instante, escutei um murmúrio de vozes. Era óbvio que Ryland
não havia sido o primeiro a chegar ao encontro marcado. Engatinhei com cautela
para fora dos arbustos e, palmo a palmo, com a máxima precaução para não
fazer barulho, rastejei pela trilha íngreme. Agora só uma rocha me separava do
burburinho de vozes. Sentindo-me seguro na escuridão, espiei por cima da pedra.
Dei de cara com o cano de uma pistola automática!
– Mãos ao alto! – disse o sr. Ryland, sucinto. – Estava lhe esperando.
Ele estava sentado na sombra da rocha, de modo que eu não conseguia
enxergar seu rosto, mas o tom de ameaça em sua voz era desagradável. Então,
senti um anel de aço gelado na nuca, e Ryland baixou a arma.
– Muito bem, George – falou arrastando as palavras. – Faça-o andar até
aqui.
Sem revelar minha raiva, fui levado a um nicho no meio das sombras, onde
o invisível George (o qual eu suspeitava ser o impecável Deaves) me amordaçou
e me amarrou com maestria.
Ryland falou de novo numa voz que eu tive dificuldade em reconhecer, de
tão gélida e ameaçadora.
– Este é o fim de vocês dois. Já se meteram demais no caminho dos Quatro
Grandes. Por acaso ouviu falar de desabamento de encostas? Dois anos atrás,
houve um aqui. Hoje à noite, vai acontecer outro. Deixei tudo preparado. Puxa,
seu amigo não é nada pontual.
Uma onda de horror tomou conta de mim. Poirot! Dali a pouco ele pisaria
na armadilha. E eu estava impotente para avisá-lo. Só me restava rezar para que
ele tivesse preferido deixar o assunto em minhas mãos e permanecido em
Londres. Com certeza, se tivesse vindo, já teria aparecido àquela altura.
A cada minuto que passava, minhas esperanças aumentavam.
De repente, elas foram despedaçadas. Escutei passos – passos cautelosos,
mas, sem dúvida, passos. Retorci-me em agonia impotente. Os passos desceram
a trilha, estacaram, e então surgiu Poirot em pessoa, a cabeça um pouco
inclinada, espiando em meio às sombras.
Ryland rosnou de satisfação quando ergueu a pistola e bradou:
– Mãos ao alto.
Deaves saltou à frente e atacou Poirot pela retaguarda. A cilada estava
completa.
– Prazer em conhecê-lo, sr. Hercule Poirot – disse o americano, soturno.
Maravilhoso o autocontrole de Poirot. Não moveu um fio de cabelo. Mas
percebi seu olhar vasculhando a escuridão.
– Meu amigo? Está aqui?
– Sim, vocês dois caíram na armadilha… a armadilha dos Quatro Grandes.
Ele riu.
– Uma armadilha? – indagou Poirot.
– Não caiu na real ainda?
– Sei que existe uma armadilha… sim – disse Poirot suavemente. – Mas está
enganado, monsieur. É o senhor que caiu nela… não nós.
– O quê?! – Ryland ergueu a grande pistola automática, mas percebi seu
olhar hesitante.
– Se apertar o gatilho, vai cometer assassinato perante dez pares de olhos e
será enforcado por isso. Há uma hora, o lugar está cercado por homens da
Scotland Yard. Xeque-mate, sr. Abe Ryland.
Deu um estranho assobio, e, num passe de mágica, o local fervilhou de
policiais. Seguraram Ryland e seu ajudante e os desarmaram. Após trocar umas
palavras com o oficial encarregado, Poirot pegou meu braço e me levou embora.
Tão logo saímos da pedreira, abraçou-me com vigor.
– Você está vivo… e sem um arranhão. Que magnífico. Quantas vezes me
culpei por deixar você se arriscar.
– Estou perfeitamente bem – disse, desvencilhando-me. – Apenas um
pouco confuso. Descobriu o plano deles então?
– Mas eu esperava por isso! Por que acha que deixei você se infiltrar lá? O
nome falso, o disfarce, nem por um momento tinham a intenção de enganar!
– O quê?! – gritei. – Nunca me contou.
– Já tive oportunidade de lhe dizer várias vezes, Hastings. Sua índole é tão
bela e honesta! Por isso, a menos que você mesmo seja enganado, é impossível
para você enganar aos outros. Bom, então, você é descoberto logo de cara.
Fazem o que eu esperava que eles fizessem (certeza matemática para quem
utiliza as células cinzentas de modo adequado): usá-lo como isca. A garota entra
em ação. A propósito, mon ami, um interessante detalhe psicológico. Por acaso
ela é ruiva?
– Se você se refere à srta. Martin – disse eu com frieza –, o cabelo dela é de
um tom delicado de ruivo, mas…
– São épatants esses sujeitos! Fizeram o dever de casa, inclusive estudaram
a sua psicologia. Ah! Sim, meu amigo, a srta. Martin estava no enredo, e como.
Ela repete o conteúdo da carta para você, junto com a história sobre a ira do sr.
Ryland. Você toma nota, põe o cérebro para funcionar… a charada é bem
idealizada, difícil, mas não muito. Você soluciona e me envia. Mas eles não
contavam que eu estava justamente esperando isso acontecer. Na mesma hora,
procuro o inspetor Japp e combino as coisas. E assim, como pode ver, tudo deu
certo!
Eu não fiquei muito contente com Poirot e deixei isso bem claro. Voltamos
a Londres no trem-leiteiro em plena madrugada. Viagem para lá de
desconfortável.
Recém eu saíra do banho e me deixava contagiar pela ideia prazerosa de
tomar um bom café da manhã quando escutei a voz de Japp na sala de estar.
Vesti o roupão e entrei, apressado, a tempo de ouvir:
– Em que confusão você nos meteu. Que coisa feia, Poirot. Caiu do cavalo,
hein? Sempre tem a primeira vez.
Poirot parecia absorto. Japp continuou:
– Nós levando a sério toda essa história de organização criminosa secreta…
e o tempo todo era o lacaio.
– O lacaio? – perguntei, ofegante.
– Sim. James, ou seja lá qual for o nome dele. Parece que ele apostou na
sala dos empregados que era capaz de se fazer passar pelo patrão enganando um
colega que se achava importante (estamos falando do nosso capitão Hastings).
Como parte da encenação, entregaria vários materiais sobre espionagem
referentes a uma gangue chamada Quatro Grandes.
– Impossível!
– Não acredite então. Levei os cavalheiros direto a Hatton Chase, e lá
estava o verdadeiro Ryland adormecido na cama. O mordomo e o cozinheiro, e
Deus sabe lá quantos mais, juram sobre a veracidade da aposta. O lacaio nos
pregou uma boa peça (nada mais do que isso). E o pajem é seu cúmplice.
– Então é por isso que ele ficava no escuro – murmurou Poirot.
Depois de Japp ir embora, nos entreolhamos.
– Agora, Hastings, temos certeza – disse Poirot enfim. – Abe Ryland é o
Número Dois dos Quatro Grandes. A simulação do lacaio serviu para garantir
uma alternativa de fuga em caso de emergência. E o lacaio…
– Sim? – murmurei.
– O Número Quatro – disse Poirot em tom sério
Agatha Christie
Os ladrões de rádioNa noite após a sua libertação, Halliday dormiu no hotel, no quarto
próximo ao nosso. Durante a noite toda, escutei-o gemendo e falando em meio
ao sono. Sem dúvida a experiência dele na casa de campo havia desestabilizado
seus nervos; na manhã seguinte, fomos incapazes de extrair quaisquer
informações dele. Limitava-se a repetir afirmações sobre o imenso poder à
disposição dos Quatro Grandes e sobre a certeza da vingança que se seguiria
caso ele falasse.
Após o almoço, ele partiu para reencontrar-se com a esposa na Inglaterra,
mas Poirot e eu permanecemos em Paris. Eu estava convicto de que devíamos
tomar providências enérgicas, seja lá quais fossem. A placidez de Poirot me
incomodava.
– Pelo amor de Deus, Poirot – incitei. – Vamos atrás deles.
– Admirável, mon ami, admirável! Ir aonde e atrás de quem? Seja mais
preciso, por favor.
– Atrás dos Quatro Grandes, é claro.
– Cela va sans dire. Mas por onde vamos começar?
– Pela polícia – arrisquei, hesitante.
Poirot sorriu.
– Eles nos acusariam de estarmos fantasiando. Não temos nada concreto…
nada em absoluto. Precisamos esperar.
– Esperar o quê?
– Esperar a próxima jogada deles. Veja bem, na Inglaterra todos entendem e
adoram la boxe. Se um lutador não toma iniciativa, o outro deve fazê-lo. Ao
permitir ao adversário atacar, aprende-se algo sobre ele. Esse é nosso papel:
deixar o oponente atacar.
– Pensa que eles vão atacar? – eu disse sem me convencer.
– Não tenho dúvida alguma. Ora, em primeiro lugar, eles tentaram afastarme de Londres. Esse plano falhou. Então, no caso de Dartmoor, entramos em
cena e salvamos a vítima do patíbulo. E ontem, de novo, interferimos nos planos
deles. Com certeza, não vão deixar por isso mesmo.
Enquanto eu meditava sobre isso, escutou-se uma batida na porta. Sem
esperar por uma resposta, um homem entrou no quarto e fechou a porta atrás
dele. Era um homem alto e magro, com nariz levemente adunco e tez amarelada.
Vestia um casaco abotoado até o queixo; a aba de um chapéu de feltro macio
caía sobre os olhos.
– Queiram me desculpar, cavalheiros, por minha entrada um pouco
descortês – falou ele com voz pausada –, mas meu assunto é de natureza bem
heterodoxa.
Sorrindo, caminhou em direção à mesa e sentou-se perto dela. Eu estava
prestes a me erguer num salto, mas Poirot refreou-me com um gesto.
– Como o senhor diz, monsieur, sua entrada é um pouco descortês. Quer
fazer a bondade de esclarecer a que veio?
– Meu bom sr. Poirot, é muito simples. O senhor tem incomodado meus
amigos.
– De que maneira?
– Vamos, vamos, sr. Poirot. Não se faça de desentendido. Sabe tão bem
quanto eu.
– Depende, monsieur, de que amigos o senhor está falando.
Sem uma palavra, o homem sacou do bolso uma cigarreira. Abriu-a, tirou
quatro cigarros e jogou-os em cima da mesa. Então os apanhou e os colocou de
volta no estojo, que guardou no bolso.
– Arrá! – disse Poirot. – Então é assim? E qual a sugestão de seus amigos?
– A sugestão deles, monsieur, é empregar seus talentos (talentos muito
consideráveis) na detecção de crimes legítimos… é retornar às velhas distrações e
resolver os problemas das damas da sociedade britânica.
– Programinha pacato – disse Poirot. – E supondo que eu não concorde?
O homem fez um gesto eloquente.
– Nesse caso, é claro, lastimaríamos muito – disse ele. – Assim como os
amigos e admiradores do grandioso sr. Hercule Poirot. Mas lástimas, por mais
comoventes que sejam, não ressuscitam ninguém.
– Quanta polidez – disse Poirot, assentindo com a cabeça. – E na hipótese
de que eu aceite?
– Nesse caso estou autorizado a lhe oferecer… uma compensação.
Puxou a carteira e jogou dez notas sobre a mesa. Cada uma de dez mil
francos.
– Isso é apenas uma garantia de nossas boas intenções – disse ele. – Só dez
por cento do que vamos lhe pagar.
– Meu bom Deus – gritei, pondo-me em pé num salto –, vocês ousam
insinuar que…
– Sente-se, Hastings – falou Poirot em tom autoritário. – Controle sua
índole bela e honesta e sente-se. Ao monsieur digo o seguinte. O que me impede
de chamar a polícia para vir lhe prender, enquanto meu amigo evita a sua fuga?
– Faça isso se achar recomendável – disse nosso visitante calmamente.
– Ah! Olhe aqui, Poirot – gritei. – Não aguento mais essa lengalenga. Ligue
para a polícia e vamos acabar logo com isso.
Erguendo-me com rapidez, caminhei, resoluto, até a porta e fiquei com
minhas costas contra ela.
– Parece o caminho óbvio – murmurou Poirot, como se estivesse discutindo
consigo mesmo.
– Mas o senhor desconfia do óbvio, não? – falou nosso visitante, sorrindo.
– Vamos, Poirot – instiguei.
– Será sua responsabilidade, mon ami.
Enquanto ele tirava o fone do gancho, de repente o homem deu um salto
felino em minha direção. Eu estava preparado. Um segundo depois estávamos
engalfinhados, rolando no meio da sala. Então senti o corpo dele escorregar e
amolecer. Aproveitei a vantagem. Ele estrebuchou na minha frente. Em seguida,
no exato instante da vitória, uma coisa extraordinária aconteceu. Senti meu
corpo voando para trás. Dei de cabeça na parede e caí como se fosse um
amontoado confuso. Na mesma hora, levantei, mas a porta fechava-se atrás do
meu ex-adversário. Corri para a porta e tentei abrir, estava chaveada do lado de
fora. Apanhei o telefone da mão de Poirot.
– É da portaria? Parem um homem que está saindo. Alto, de casaco
abotoado até em cima e chapéu macio. É um foragido da justiça.
Poucos minutos depois, escutamos um ruído no corredor. A chave foi
girada, e a porta, aberta. O gerente em pessoa estava no limiar da porta.
– Conseguiram pegar o homem? – gritei.
– Não, monsieur. Ninguém desceu.
– Vocês devem ter passado por ele.
– Não passamos por ninguém, monsieur. É incrível que ele possa ter
escapado.
– Deixaram alguém passar, acho – afirmou Poirot, em sua voz gentil. –
Algum dos empregados do hotel, talvez?
– Só um garçom carregando uma bandeja, monsieur.
– Ah! – disse Poirot, num tom que disse tudo.
Quando enfim os agitados funcionários do hotel se retiraram, Poirot
comentou de si para si:
– Então é por isso que ele usava o casaco abotoado até o queixo.
– Sinto muito mesmo, Poirot – murmurei, bastante abatido. – Achava que
conseguiria dominá-lo sem problemas.
– Sim, aquele foi um golpe japonês, imagino. Não se amofine, mon ami.
Tudo transcorreu conforme o plano… o plano dele. Isso é o que eu queria.
– O que é isso? – perguntei, apanhando um objeto marrom caído no chão.
Era uma carteira fininha de couro marrom que obviamente caíra do bolso de
nosso visitante durante a luta. Continha dois recibos em nome do sr. Felix Laon e
um papel dobrado que fez meu coração acelerar. Meia página de caderno com
poucas palavras rabiscadas a lápis, mas palavras de extrema importância.
– O próximo encontro do conselho será às onze da manhã de sexta-feira na
Rue des Echelles, 34.
A assinatura era um grande número 4.
E hoje era sexta-feira, e o relógio na cornija da lareira marcava dez e meia.
– Meu Deus, que oportunidade! – exclamei. – O destino está em nossas
mãos. Mas precisamos nos apressar. Que sorte tremenda.
– Então foi por isso que ele veio – murmurou Poirot. – Agora percebo tudo.
– Percebe o quê? Vamos, Poirot, não fique aí em devaneios.
Poirot olhou para mim e balançou a cabeça devagar, sorrindo.
– “‘Quer entrar na minha sala?’ – disse a aranha para a mosca.” Não é assim
que diz a canção infantil? Não, não… eles podem ser engenhosos… mas não tão
engenhosos quanto Hercule Poirot.
– Do que diabos está falando, Poirot?
– Meu amigo, estive me perguntando o motivo da visita dessa manhã. Será
que nosso amigo realmente tinha esperança em conseguir me subornar? Ou, por
outro lado, em me assustar e me convencer a abandonar o caso? Parece difícil de
acreditar. Então, por que ele veio? Agora eu vejo o plano inteiro… tudo
certinho… tudo perfeito… o pretenso motivo de me subornar ou me assustar… a
luta necessária que ele não fez questão de evitar, na qual ele poderia deixar cair a
carteira de modo natural e cabível… e finalmente… a armadilha! Rue des
Echelles, onze da manhã? Acho que não, mon ami! Não enganam Hercule Poirot
assim tão facilmente.
– Minha nossa – falei, ofegante.
Poirot murmurava consigo, o cenho franzido.
– Tem outra coisa que eu não entendo.
– O quê?
– A hora, Hastings… a hora. Se quisessem me atrair com um engodo, não
seria melhor à noite? Por que tão cedo? Será que algo está prestes a acontecer
hoje de manhã? Algo que eles não querem que Hercule Poirot fique sabendo?
Ele balançou a cabeça.
– Vamos ver. Vou esperar sentado, mon ami. Não vamos mexer uma palha
esta manhã. Vamos esperar os acontecimentos aqui.
Às onze e meia em ponto, veio a intimação. Um petit bleu. Poirot abriu e
então me mostrou. Era de madame Olivier, a cientista mundialmente famosa, a
quem visitáramos no dia anterior para tratar do caso Halliday. Solicitava nossa
presença imediata em Passy.
Obedecemos à solicitação sem um minuto de demora. Madame Olivier nos
recebeu na mesma sala de visitas. Fiquei outra vez impressionado com o poder
maravilhoso daquela mulher, o rosto esguio de freira, os olhos ardentes – essa
brilhante sucessora de Becquerel e dos Curie. Ela foi direto ao ponto.
– Messieurs, ontem os senhores me perguntaram sobre o desaparecimento
do sr. Halliday. Fiquei sabendo que os senhores vieram aqui uma segunda vez e
pediram para falar com minha secretária, Inez Veroneau. Ela saiu de casa com os
senhores e até agora não retornou.
– É só isso, madame?
– Não, monsieur, não é. Ontem à noite, o laboratório foi arrombado. Vários
documentos e memorandos valiosos foram roubados. Os ladrões tentaram levar
algo ainda mais precioso, mas felizmente não conseguiram abrir o cofre grande.
– Madame, os fatos do caso são estes. Sua nova secretária, sra. Veroneau, é
na verdade a condessa Rossakoff, ladra experiente. Foi ela a responsável pelo
sumiço do sr. Halliday. Há quanto tempo ela foi contratada?
– Cinco meses, monsieur. O que o senhor diz me deixa espantada.
– No entanto, é verdade. Esses papéis de que a senhora fala, eram fáceis de
encontrar? Ou a senhora imagina que os ladrões tinham acesso a informação
privilegiada?
– É muito curioso… os ladrões sabiam exatamente onde procurar. O senhor
pensa que Inez…
– Sim, não tenho dúvida de que eles agiram com base nas informações dela.
Mas que coisa preciosa é essa que os ladrões não conseguiram achar? Joias?
Madame Olivier balançou a cabeça com um sorriso suave.
– Algo mais precioso do que isso, monsieur. – Ela olhou ao redor, então se
inclinou à frente, baixando a voz. – Rádio, monsieur.
– Rádio?
– Sim, monsieur. Agora estou chegando ao ápice de meus experimentos.
Tenho uma pequena porção de rádio comigo… e outra quantidade me foi
concedida para o projeto em que estou trabalhando. Embora o volume total seja
pequeno, equivale a uma boa porcentagem do estoque mundial e representa um
valor de milhões de francos.
– E onde está?
– Num estojo de chumbo, dentro do cofre grande. Não é sem motivo que o
cofre tem a aparência de uma coisa velha e gasta, mas, na verdade, é um triunfo
da arte da fabricação de cofres. Por isso os ladrões não conseguiram abri-lo.
– Por quanto tempo a senhora ainda vai manter esse rádio em seu poder?
– Só mais dois dias, monsieur. Então vou concluir meus experimentos.
Os olhos de Poirot brilharam.
– E Inez Veroneau sabe disso? Bom… então nossos amigos vão retornar.
Não comente sobre mim com ninguém, madame. Mas fique certa, vou guardar o
rádio para a senhora. A senhora tem a chave da porta do laboratório que dá para
o jardim?
– Sim, monsieur. Aqui está. Tenho uma cópia. E aqui está a chave da porta
do jardim para a alameda entre esta casa e a casa vizinha.
– Obrigado, madame. Hoje à noite, vá dormir como de costume, mas não se
preocupe, deixe que eu me encarrego de tudo. Apenas não comente nada com
ninguém… nem mesmo com seus dois assistentes… mademoiselle Claude e
monsieur Henri, não é? Principalmente com eles.
Poirot deixou a casa de campo esfregando as mãos com grande
contentamento.
– O que vamos fazer agora? – indaguei.
– Agora, Hastings, vamos embora de Paris… rumo à Inglaterra.
– O quê?
– Vamos fazer as malas, almoçar e pegar um táxi para a Gare du Nord.
– Mas e o rádio?
– Eu disse que nós estamos indo para a Inglaterra… não disse que vamos
chegar lá. Raciocine um pouco, Hastings. É quase certo que estamos sendo
observados e seguidos. Nossos inimigos precisam acreditar que estamos
voltando para a Inglaterra. Não vão acreditar nisso a menos que nos vejam a
bordo do trem em movimento.
– Quer dizer que vamos pular de novo na última hora?
– Não, Hastings. Só uma partida bona fide será capaz de satisfazer nossos
inimigos.
– Mas o trem não para até Calais!
– Vai parar se for pago para isso.
– Ah, deixa disso, Poirot… certamente ninguém pode pagar um trem para
ele parar… eles se recusariam.
– Meu caro amigo, nunca prestou atenção na pequena alça (o signal
d’arrêt), cuja multa por uso impróprio é de 100 francos, se não me engano?
– Ah! Vai puxar aquilo?
– Ou senão um grande amigo, Pierre Combeau, o fará por mim. Então,
enquanto ele estiver discutindo com o guarda, no meio do alvoroço, saímos de
fininho do trem.
Seguimos o plano de Poirot à risca. Pierre Combeau, velho camarada de
Poirot, que evidentemente conhecia muito bem os métodos de meu amiguinho,
encarregou-se de tomar as devidas providências. Mal o trem entrou nos
subúrbios de Paris, ele puxou o cordão do freio de emergência. Enquanto
Combeau fazia um “escândalo” bem à moda francesa, Poirot e eu descemos do
trem sem ninguém se importar. Nosso primeiro procedimento foi realizar uma
considerável mudança em nossa aparência. Poirot trouxera os materiais para isso
com ele num pequeno estojo. O resultado foi dois vagabundos em camisas azuis
e sujas. Jantamos num obscuro albergue e partimos rumo a Paris logo depois.
Eram quase onze horas quando nos encontramos outra vez nas vizinhanças
da casa de campo de madame Olivier. Olhamos acima e abaixo da estrada antes
de entrarmos, sorrateiros, na alameda. O lugar parecia um completo deserto. De
uma coisa podíamos ter certeza: ninguém nos seguira.
– Não acho que já estejam por aqui – sussurrou-me Poirot. – É possível que
não venham até amanhã à noite, mas sabem perfeitamente que o rádio só vai
ficar aqui mais duas noites.
Com muito cuidado, viramos a chave da porta do jardim. Ela se abriu
silenciosamente, e penetramos no jardim.
E então, quando menos esperávamos, o ataque repentino. Num minuto
fomos cercados, amordaçados e amarrados. No mínimo dez homens deviam
estar nos esperando. Inútil resistir. Como dois fardos indefesos fomos içados e
transportados. Para meu forte espanto, fomos levados rumo a casa, e não para
longe dela. Com uma chave eles abriram a porta do laboratório e nos carregaram
para dentro. Um dos homens inclinou-se à frente do cofre enorme e abriu a
porta. Uma sensação desagradável percorreu minha espinha. Será que iam nos
fechar no cofre e nos deixar asfixiando lentamente lá dentro?
Entretanto, para minha surpresa, percebi que no fundo do cofre degraus
conduziam a um porão. Fomos levados escada abaixo por um caminho estreito
até chegarmos a uma grande câmara subterrânea. Ali nos esperava uma senhora
alta e imponente, o rosto coberto por veludo negro. Seus gestos de autoridade
revelavam que ela comandava a situação. Os homens nos largaram no chão, e
ficamos a sós com a misteriosa criatura mascarada. Eu não tinha dúvidas sobre
quem ela devia ser. A francesa desconhecida… o Número Três dos Quatro
Grandes.
Ela ajoelhou-se a nosso lado e removeu as mordaças, mas nos deixou
amarrados. Então se ergueu e, virando o rosto em nossa direção, num gesto
ligeiro e repentino, retirou a máscara.
Madame Olivier!
– Monsieur Poirot – disse em tom baixo de escárnio. – O grande, o
maravilhoso, o incomparável monsieur Poirot! Ontem mandei um aviso. O
senhor achou por bem desconsiderá-lo… pensou que era páreo para NOSSA
organização. Olha só no que deu.
Um calafrio percorreu minha espinha. A frieza maligna daquelas palavras
destoava do fogo ardente daquele olhar. Ela estava insana, insana, com a
insanidade dos gênios!
Poirot não disse nada. Boquiaberto, não tirava os olhos dela.
– Bem – disse ela, com voz suave –, esse é o fim. Não podemos deixar
ninguém atrapalhar os nossos planos. Quer fazer um último pedido?
Nunca antes nem depois senti a morte tão perto. Poirot foi sublime. Não se
intimidou nem tampouco empalideceu. Apenas a encarou com aguçado
interesse.
– Sua psicologia me atrai imensamente, madame – disse com a voz
tranquila. – É uma pena que eu tenha tão pouco tempo para dedicar a esse
estudo. Sim, tenho um pedido a fazer. A um condenado não se nega o direito de
fumar um último cigarro, acredito. A cigarreira está no meu bolso. Com sua
permissão… – Baixou os olhos para as cordas que o prendiam.
– Ah, sim! – riu-se ela. – Quer que eu desamarre suas mãos, não quer?
Muito inteligente, monsieur Hercule Poirot. Não vou desamarrá-lo… mas vou
pegar um cigarro para você.
Ajoelhou-se ao lado de Poirot, sacou a cigarreira, pegou um cigarro e
colocou-o entre os lábios do prisioneiro.
– E agora um fósforo – disse ao levantar-se.
– Não é necessário, madame.
Algo na voz dele me deixou perplexo. Ela também ficou hipnotizada.
– Não se mova, eu lhe peço, madame. A senhora vai se arrepender. Por
acaso já ouviu falar nas propriedades do curare? Os índios da América do Sul o
usam para envenenar a ponta das flechas. Um arranhão é morte certa. Certas
tribos usam uma pequena zarabatana… eu também tenho uma pequena
zarabatana, camuflada na forma exata de um cigarro. A única coisa que preciso
fazer é soprar… Ah! Não tente nada. Não se mova, madame. O mecanismo deste
cigarro é o mais engenhoso. Um mero sopro… e um dardo minúsculo em
formato de espinha de peixe cruza o ar… até encontrar o alvo. Não quer morrer,
madame. Portanto, suplico: solte as cordas de meu amigo Hastings. Não posso
usar as mãos, mas posso mover a cabeça… então… está na minha mira, madame.
Não cometa um deslize, eu suplico.
Devagar, com as mãos trêmulas, a fúria e o rancor crispando as feições,
abaixou-se e obedeceu. Eu estava livre. A voz de Poirot seguiu dando instruções.
– Agora amarre a madame, Hastings. Isto mesmo. Está bem presa? Então
me solte, por favor. Ainda bem que ela mandou embora os capangas. Com um
pouco de sorte, o caminho da saída vai estar desobstruído.
No minuto seguinte, Poirot estava em pé a meu lado. Fez uma reverência à
senhora.
– Ninguém mata Hercule Poirot assim tão facilmente, madame. Boa noite.
A mordaça a impediu de responder, mas o fulgor assassino de seu olhar me
assustou. Desejei do fundo do coração nunca mais cairmos nas mãos dela outra
vez.
Três minutos depois estávamos fora da casa de campo, atravessando o
jardim a passos acelerados. A estrada lá fora estava deserta, e logo saímos do
bairro.
Então, Poirot soltou a língua.
– Mereço tudo que essa mulher me disse. Sou um idiota triplo, um animal
miserável, 36 vezes imbecil. Eu me vangloriava por não ter caído na cilada. E na
verdade nem era para ser uma cilada, a não ser pelo modo exato em que acabei
caindo nela. Não apenas sabiam como apostaram que eu perceberia a
armadilha… Isso explica tudo… por isso todos se renderam com tanta facilidade.
Halliday… tudo. Madame Olivier era o espírito líder; Vera Rossakoff a tenente. A
madame precisava das ideias de Halliday… com sua genialidade preencheria as
lacunas que o confundiam. Sim, Hastings, agora sabemos quem é o Número
Três: talvez a maior cientista do mundo! Pense nisso. O cérebro do Oriente, a
ciência do Ocidente… e outros dois cujas identidades ainda não sabemos. Mas
precisamos descobrir. Amanhã voltamos a Londres e colocamos a mão na massa.
– Não vai denunciar madame Olivier para a polícia?
– Ninguém acreditaria em mim. A mulher é um dos ícones da França. Além
do mais, não podemos provar nada. Temos sorte se ela não nos denunciar.
– Como?
– Pense bem. Somos encontrados à noite na propriedade dela com chaves
em nosso poder que ela juraria não ter nos fornecido. Ela nos surpreende no
cofre. Então a amordaçamos, amarramos e depois fugimos. Não se iluda,
Hastings. O feitiço pode virar contra o feiticeiro… não é esse o ditado?
Agatha Christie
Nada mais pôde ser extraído da sra. Halliday. Retornamos sem demora a
Londres e, no dia seguinte, nos vimos a caminho do continente. Com um sorriso
um tanto sentido, Poirot observou:
– Com esses Quatro Grandes, não consigo ficar parado, mon ami. Corro
para cima e para baixo, por todos os terrenos, como nosso velho amigo, “o
sabujo humano”.
– Talvez você o encontre em Paris – disse eu, sabendo que ele se referia a
um certo Giraud, um dos detetives mais conceituados da Sûreté, que Poirot
conhecera numa ocasião anterior.
Poirot fez uma careta.
– Tomara que não. Ele não gosta de mim, esse camarada.
– Não será uma tarefa muito difícil? – indaguei. – Descobrir o que um
inglês desconhecido fez numa noite dois meses atrás?
– Para lá de difícil, mon ami. Mas como você bem sabe, as dificuldades
deleitam o coração de Hercule Poirot.
– Pensa que os Quatro Grandes o sequestraram?
Poirot assentiu com a cabeça.
Nossas investigações acabaram retornando ao terreno percorrido e
descobrimos pouca coisa a acrescentar àquilo que a sra. Halliday já nos contara.
Poirot teve uma demorada entrevista com o professor Bourgoneau, durante a
qual ele procurou esclarecer se Halliday havia mencionado qualquer plano
pessoal para aquela noite, mas o resultado foi uma lacuna completa.
Nossa próxima fonte de informações era a famosa madame Olivier. Eu
estava muito animado enquanto subíamos os degraus de sua casa de campo em
Passy. Sempre achei extraordinário que uma mulher tivesse ido tão longe no
mundo científico. Antes eu pensava que esse tipo de atividade exigia um cérebro
puramente masculino.
A porta foi aberta por um rapaz de seus dezessete anos, que me lembrou
vagamente um coroinha, tão de acordo com os ritos eram suas maneiras. Poirot
havia tomado a precaução de agendar com antecedência a nossa entrevista, pois
sabia que madame Olivier, mergulhada em pesquisas a maior parte do dia, nunca
recebia ninguém sem hora marcada.
Fomos conduzidos a uma sala de visitas e em seguida a dona da casa uniuse a nós. Madame Olivier era muito alta; seu tamanho era acentuado pelo
comprido avental branco que trajava e pela touca, parecida com a de uma freira,
que cobria a sua cabeça. No rosto esguio e pálido, maravilhosos olhos negros
reluziam um brilho quase fanático. Parecia mais uma antiga sacerdotisa do que
uma francesa moderna. Uma das faces era desfigurada por uma cicatriz. Então
lembrei que, há uns três anos, o marido dela, também cientista, morrera numa
explosão no laboratório. No mesmo acidente, ela sofrera queimaduras horríveis.
Desde então, havia se afastado do mundo e se lançado com energia ardente no
trabalho da pesquisa científica. Recebeu-nos com frieza polida.
– Os policiais me interrogaram muitas vezes, messieurs. Acho que não vou
ser capaz de ajudar aos senhores, pois não fui capaz de ajudar a eles.
– Madame, talvez eu não faça exatamente as mesmas perguntas. Para
começar, sobre o que a senhora e o sr. Halliday conversaram?
Ela pareceu um pouco surpresa.
– Sobre o trabalho dele!… E também sobre o meu.
– Ele mencionou as teorias que havia coligido recentemente num artigo lido
perante a Associação Britânica?
– É lógico que sim. Foi esse o assunto principal de nossa conversa.
– Ideias um tanto fantásticas, não? – indagou Poirot despreocupadamente.
– Algumas pessoas pensam assim. Eu não concordo.
– A senhora as considera viáveis?
– Perfeitamente viáveis. Minha própria linha de pesquisa tem sido um
pouco semelhante, embora não desenvolvida com o mesmo objetivo. Tenho
investigado os raios gama emitidos pela substância conhecida comumente como
rádio C, produto da emanação do rádio. Fazendo isso me deparei com certos
fenômenos magnéticos muito interessantes. De fato, desenvolvi uma teoria sobre
a verdadeira natureza da força que chamamos de magnetismo. Mas ainda não
chegou a hora de o mundo conhecer minhas descobertas. Eu tinha muito
interesse nos experimentos e pontos de vista do sr. Halliday.
Poirot concordou com um movimento de cabeça. Então fez uma pergunta
que me surpreendeu.
– Madame, onde vocês conversaram sobre esses assuntos? Aqui?
– Não, monsieur. No laboratório.
– Posso vê-lo?
– Claro.
Ela nos conduziu rumo à porta por onde entrara. Abria-se num pequeno
corredor. Passamos duas portas e penetramos no grande laboratório, com seu
esquadrão de provetas e cadinhos e uma centena de outros utensílios que eu
sequer sabia o nome. Dois pesquisadores trabalhavam em algum experimento.
Madame Olivier nos apresentou a eles.
– Mademoiselle Claude, minha colaboradora. – Uma jovem alta de rosto
sisudo nos cumprimentou com a cabeça. – Monsieur Henri, um velho e leal
amigo. – Um moço baixote e moreno fez uma reverência abrupta.
Poirot olhou ao redor. Havia duas portas além daquela por onde entráramos.
Uma delas, explicou a dona da casa, dava para o jardim; a outra, para um
aposento menor, também dedicado à pesquisa. Poirot prestou atenção a tudo isso
e então disse estar pronto para voltar à sala de visitas.
– Madame, a senhora estava a sós com o sr. Halliday durante o encontro?
– Sim, monsieur. Meus dois colaboradores estavam no gabinete menor ao
lado.
– A conversa não poderia ter sido ouvida… por eles ou por alguém mais?
Madame Olivier meditou e então balançou a cabeça.
– Acho que não. Tenho quase certeza que não. As portas estavam todas
fechadas.
– Alguém não poderia estar escondido no laboratório?
– Tem um grande armário no canto… mas a hipótese é absurda.
– Pas tout à fait, madame. Mais uma coisinha: por acaso o sr. Halliday fez
alguma menção sobre os planos dele naquela noite?
– Não mencionou nada, monsieur.
– Obrigado, madame, e peço desculpas por perturbá-la. Não se incomode
em nos acompanhar… sabemos o caminho.
Saímos para o hall. Naquele instante, uma senhora entrava pela porta da
frente. Subiu rapidamente as escadas e me deixou uma impressão de luto
profundo, símbolo das viúvas francesas.
– Raro tipo de mulher, esse – observou Poirot, enquanto nos afastávamos.
– Madame Olivier? Sim, ela…
– Mais non, não madame Olivier. Cela va sans dire. Não existem muitos
gênios do calibre dela no mundo. Refiro-me à outra dama… a dama na escadaria.
– Não vi o rosto dela – comentei, encarando Poirot. – E não sei como você
viu. Ela nem nos olhou.
– Por isso mesmo é um tipo raro – disse Poirot com placidez. – Uma dama
que entra na casa dela (pois presumo que seja a casa dela, já que abriu a porta a
chave) e sobe a escadaria correndo, sem nem ao menos olhar quem são os dois
visitantes estranhos no hall, é um tipo raríssimo de mulher… bem artificial, na
verdade. Mille tonnerres! O que é isso?
Ele me deteve… na hora H. Uma árvore caiu em cima da calçada, por pouco
não nos atingindo. Poirot pousou o olhar nela, pálido e preocupado.
– Essa foi por um triz! Que coisa canhestra… nunca suspeitei… pelo menos
quase nunca. Mas se não fosse meu reflexo de felino, Hercule Poirot estaria
agora esmagado e eliminado… uma terrível calamidade para o mundo. E você,
também, mon ami. Se bem que isso não seria nenhuma catástrofe nacional.
– Obrigado – comentei friamente. – E o que vamos fazer agora?
– Fazer? – gritou Poirot. – Vamos pensar. Sim, aqui e agora, vamos
exercitar nossas pequenas células cinzentas. Por exemplo: esse sr. Halliday
esteve mesmo em Paris? Sim, pois o professor Bourgoneau, que o conhece bem,
encontrou-se e falou com ele.
– Aonde diabos quer chegar?
– Isso foi na manhã de sexta-feira. No mesmo dia ele foi visto às onze da
noite pelo porteiro… mas será que era ele?
– O porteiro…
– O porteiro da noite… que nunca havia visto Halliday antes. Um homem
entra, parecido o bastante com Halliday (por isso podemos crer que era o
Número Quatro), pergunta por mensagens, sobe ao apartamento, arruma uma
pequena valise e sai de fininho na manhã seguinte. Ninguém viu Halliday
naquela noite… ninguém, pois ele já havia caído nas mãos de seus inimigos. Terá
sido Halliday a pessoa recebida por madame Olivier? Sim, pois, embora ela não
o conhecesse pessoalmente, um impostor dificilmente conseguiria enganá-la ao
falar do assunto dominado por ela. Veio aqui, conversou e foi embora. O que
aconteceu depois?
Segurando-me pelo braço, Poirot nitidamente me puxava de volta à casa de
campo.
– Pois bem, mon ami, imagine que hoje é o dia seguinte após o
desaparecimento e que estamos à procura de pegadas. Você adora pegadas, não é
mesmo? Observe… aqui vão elas, o rastro de um homem, do sr. Halliday… Ele
dobra à direita como nós fizemos, aperta o passo e… ah! Outras pegadas vêm
atrás… velozes, pequenas, femininas. Veja, ela o alcança… uma jovem e esbelta
mulher, usando um véu de viúva. “Pardon, monsieur, madame Olivier está lhe
chamando outra vez.” Ele para e dá meia-volta. Ela não quer ser vista
caminhando com ele. Pois bem, aonde a jovem vai levá-lo? Será coincidência
que ela o alcança bem onde se abre uma estreita passagem, dividindo dois
jardins? Ela o conduz por essa alameda. “É mais perto por aqui, monsieur”. À
direita está o jardim da casa de campo de madame Olivier, à esquerda, o jardim
de outra casa… e foi desse jardim, preste atenção, que a árvore quase caiu em
cima de nós. As portas dos dois jardins abrem-se na alameda. Ali está a cilada.
Homens saem, o dominam e o carregam para a casa desconhecida.
– Minha nossa, Poirot – exclamei –, está fingindo ver tudo isso?
– Vejo com os olhos da mente, mon ami. Assim, só assim, tudo pode ter
acontecido. Venha, vamos retornar até a casa.
– Quer falar com madame Olivier outra vez?
Poirot deu um sorriso estranho.
– Não, Hastings. Quero ver o rosto da dama da escadaria.
– Pensa que ela tem parentesco com madame Olivier?
– Mais provavelmente uma secretária… contratada há pouco tempo.
O mesmo acólito gentil abriu-nos a porta.
– Você poderia me dizer – indagou Poirot – o nome da senhora, a viúva,
que acabou de entrar?
– Sra. Veroneau? A secretária da madame?
– Ela mesma. Poderia fazer a gentileza de chamá-la? Gostaríamos de ter
uma palavrinha com ela.
O garoto desapareceu. Logo depois, ressurgiu.
– Sinto muito. Sra. Veroneau deve ter saído de novo.
– Não creio – disse Poirot calmamente. – Poderia dar a ela meu nome,
monsieur Hercule Poirot. Diga que é importante eu vê-la agora, pois estou indo
nesse instante à chefatura de polícia.
De novo nosso mensageiro retirou-se. Dessa vez a dama desceu. Passou
rumo à sala de visitas. Seguimos os passos dela. Ela se virou e ergueu o véu.
Para minha surpresa, reconheci nossa velha antagonista, a condessa Rossakoff,
uma condessa russa que tramara um roubo de joias especialmente engenhoso em
Londres.
– Na hora em que vislumbrei o senhor no hall, temi pelo pior – ela
observou, melancólica.
– Minha querida condessa Rossakoff…
Ela balançou a cabeça.
– Inez Veroneau – murmurou ela. – Espanhola, casada com um francês. O
que o senhor quer comigo, monsieur Poirot? O senhor é terrível. Foi atrás de
mim e me obrigou a fugir de Londres. Agora, suponho, vai me delatar para a
nossa maravilhosa madame Olivier e me obrigar a fugir de Paris? Nós, russos,
precisamos ganhar a vida, sabe.
– É mais sério do que isso, madame – disse Poirot, sem tirar os olhos dela.
– Proponho entrarmos na casa ao lado e libertar o sr. Halliday, se ele ainda
estiver vivo. Sei de tudo.
Ela empalideceu de repente e mordeu o lábio. Então falou decidida como
sempre.
– Ele continua vivo… mas não está na casa. Vamos, monsieur, proponho
uma transação. A minha liberdade… em troca do sr. Halliday são e salvo.
– Negócio fechado – disse Poirot. – Eu estava prestes a fazer essa mesma
proposta. A propósito, trabalha para os Quatro Grandes, madame?
De novo notei uma palidez mortal fustigar seu rosto, mas ela deixou a
pergunta sem resposta. Em vez disso, pediu:
– Posso fazer um telefonema? – E, atravessando a sala, discou um número.
– É o número da casa – explicou ela – onde nosso amigo está preso. Pode dar o
número à polícia… o ninho vai estar vazio quando eles chegarem. Ah! Estou
cansada disso. É você, André? Sou eu, Inez. O baixinho belga sabe de tudo.
Mande Halliday para o hotel e limpe todo o local.
Colocou o fone no gancho e veio em nossa direção, sorrindo.
– Irá junto conosco ao hotel, madame.
– Claro. Esperava por isso.
Chamei um táxi e partimos juntos. Pude notar pela expressão de Poirot que
ele estava aturdido. Parecia tudo muito fácil para ser verdade. Chegamos ao
hotel. O porteiro veio ter conosco.
– Um cavalheiro chegou. Está no seu quarto. Parece muito doente. Uma
enfermeira veio junto com ele, mas já foi embora.
– Está tudo bem – disse Poirot –, é um amigo meu.
Subimos juntos ao quarto. Sentado na cadeira perto da janela, um jovem de
rosto desfigurado e olheiras fundas parecia à beira da exaustão. Poirot
aproximou-se dele.
– O senhor é John Halliday? – O homem balançou a cabeça
afirmativamente. – Mostre-me o braço esquerdo. John Halliday tem uma pinta
escura pouco abaixo do cotovelo esquerdo.
O homem esticou o braço. Ali estava a pinta. Poirot fez uma mesura à
condessa. Ela deu meia-volta e saiu do recinto.
Um cálice de conhaque reavivou Halliday um pouco.
– Meu Deus! – murmurou ele. – Que inferno eu passei… paguei meus
pecados… esses malvados são encarnações satânicas. Minha esposa, onde está
ela? Fiquei sabendo que ela acreditou que… acreditou que…
– Não acreditou – afirmou Poirot. – Nunca deixou de confiar no senhor.
Está lhe esperando… ela e a criança.
– Graças a Deus. Mal posso acreditar que estou livre outra vez.
– Agora que está um pouco melhor, monsieur, eu gostaria de ouvir a
história completa desde o começo.
Halliday olhou para ele com uma expressão indescritível.
– Não lembro… não lembro de nada – disse.
– Como?
– Já ouviu falar dos Quatro Grandes?
– Alguma coisa – respondeu Poirot secamente.
– O senhor não sabe o que eu sei. Eles têm poderes ilimitados. Se eu
permanecer calado, estarei seguro… se eu disser uma palavra… não apenas eu,
mas minha família sofrerá coisas terríveis. Não vale a pena discutir comigo. Eu
sei… Não lembro… de nada.
E, erguendo-se, saiu do quarto.
O rosto de Poirot assumiu uma expressão desconcertada.
– É assim, então? – resmungou ele. – Os Quatro Grandes vencem outra vez.
O que é que você está segurando, Hastings?
Entreguei-lhe.
– A condessa rabiscou antes de sair – expliquei.
Poirot leu:
– “Au revoir. I.V.” Assinado com as iniciais de Inez Veroneau. Só uma
coincidência, talvez, significarem também Quatro em números romanos. Isso me
faz pensar, Hastings, isso me faz pensar.